Por Rodrigo Cardoso*
Fui ver a versão cinematográfica dessa história que já havia me impactado quando tive contato no início do movimento estudantil. Participei do congresso que batizou o diretório dos estudantes da UESC como DCE-Livre Carlos Marighella. Então, faziam 30 anos do seu assassinato pela ditadura e o DCE tinha acabado de promover a visita da viúva Clara Charf à universidade na exposição “Encontra-se Marighella”, divulgada por um cartaz com uma releitura do icônico “Procura-se”. Em um tempo de resistência ao autoritarismo carlista e ao neoliberalismo, obviamente foi aprovado por unanimidade o novo nome da entidade estudantil, orgulhosa do protagonismo na luta pela estadualização da antiga FESPI (Federação dos Estabelecimentos de Ensino Superior de Ilhéus e Itabuna), instituição privada antecessora da UESC.
Já tinha lido algumas críticas às opções do diretor e roteirista Wagner Moura, além de ter assistido a uma entrevista do mesmo com Juca Kfouri, na TVE Bahia, que relatou ter participado de uma equipe de apoio da Ação Libertadora Nacional-ALN, organização fundada por Marighella após romper com o PCB.
É um filme de ação que conta uma história repleta de emoção em um momento trágico do país. Muitas cenas pesadas e bem realizadas. Claro que o baixo orçamento não permitiria tiroteios e perseguições hollywoodianas, mas nada cuja falta tenha comprometido o resultado final.
Não posso negar que senti falta, aí, sim, de algumas cenas mostrando o Marighella líder político. O jovem deputado constituinte que teve como companheiros de bancada figuras do porte do escritor Jorge Amado, o futuro comandante da Guerrilha do Araguaia, Maurício Grabois, o líder histórico do PCdoB, João Amazonas, além do Cavaleiro da Esperança, Luís Carlos Prestes, no senado. A cassação dos mandatos populares dos comunistas, a proibição do funcionamento legal do Partido e a dura perseguição aos movimentos sociais naquele período da guerra fria poderiam contribuir com a narrativa, a construção do protagonista e a justificação de suas decisões. O golpe e a prisão no cinema acabam quase sendo apresentados como únicas causas para o início da luta armada. Gravíssimas, com certeza, mas ignorando o conjunto de violências e repressões históricas sofridas pelo povo e que impactaram duramente aquelas pessoas a ponto de sacrificarem suas vidas na luta pela democracia. Para “essa legião que se entregou por um novo dia”, se omitir não era uma opção.
Apesar disso, enquanto filme de ficção baseado em fatos reais, não documentário, o resultado é positivo. A evolução das ações dos protagonistas em contraponto com a escalada de brutalidade da repressão ditatorial é bem construída. As dúvidas e contradições na célula revolucionária, bem apresentadas. Decisões chocantes não são escondidas. É um filme de guerra. De uma triste guerra extremamente desigual.
Impossível não vibrar com a mensagem da ALN, transmitida pelo sinal roubado da Rádio Nacional, que pregava a derrubada da ditadura, a formação de um governo popular, a liberdade de imprensa, o fim da censura e do latifúndio e melhorias nas condições de vida de operários, camponeses e classes médias. Ou evitar o nó na garganta com o “justiçamento” do militar americano, professor de tortura, metralhado por um guerrilheiro na frente do filho.
O antagonista, delegado do DOPS interpretado por Bruno Gagliasso, acaba sendo unidimensional. Claro que é difícil estabelecer qualquer nível de empatia com um personagem baseado em um torturador conhecido. Quer dizer, menos para o psicopata que está na presidência da República e alguns de seus seguidores que volta e meia resolvem homenagear figuras capazes de torturar crianças… Tempos difíceis…
Nesse ponto, como não lembrar de “O que é isso Companheiro?”, filme de 1997? A história do sequestro do embaixador americano, baseado no livro de Fernando Gabeira, um dos “meninos do MR8”, como os militantes do Movimento Revolucionário 8 de Outubro são chamados por “Branco/Joaquim Câmara Ferreira” (Luiz Carlos Vasconcelos). Nele, o militante “Jorge/Virgílio Gomes da Silva” (Jorge Paz), é retratado como “Companheiro Jonas” (Mateus Nachtergale), um duro e impiedoso guerrilheiro, em visível contraponto a um torturador cheio de conflitos pessoais, interpretado por Marco Ricca. Agora é humanizado como um revolucionário, pai de três filhos, que não conseguia se afastar da luta e do trágico fim de um patriota.
Alguns dos coadjuvantes poderiam ter sido mais explorados, mas, enfim… É muita história pra contar em duas horas e o diretor precisa fazer suas opções.
Wagner Moura as fez. Em suas palavras, é um filme de ação para assistir no cinema, pelas questões técnicas, mas também pela catarse coletiva estimulada pela reação a figuras que compõe nossa tragédia nacional. Não é uma hagiografia de Marighella.
Acrescento que tampouco é uma biografia, apesar de ser baseado em uma, o que pode ser frustrante para quem esperava a história de Carlos Marighella e se deparou “apenas” com a história dos anos de guerrilheiro que incendiou o mundo.
Um bom filme, pesado, impactante e muito adequado a nossos dias. “Memória de um tempo onde lutar por seu direito é um defeito que mata.”
*Presidente do Sindicato dos Bancários e Dirigente Estadual do PCdoB